Pão de aveia e geleia de jabuticaba caseiros. Viva a autossuficiência doméstica! |
A primeira surpresa foi o meu encontro - literalmente - com a jabuticaba. A temporada da fruta já passou por aqui e eu fiquei meio frustrada de não ter conseguido nem umazinha sequer pra comer, menos ainda um monte delas para testar minhas habilidades geleificantes. Ei que ao caminhar pela rua no centro da cidade dou de cara com um saquinho cheio de bolotinhas sobre uma banca conhecida. Passo por elas e sou atraída de imediato, num instante a luz do "eu preciso disso" acende, ao que eu volto e pergunto a moça na barraca: "Isso é jabuticaba, né?", não resisto e levo o saco pra casa imaginando a geleia a ser produzida.
No dia seguinte, ontem, separei metade que foi direto para o freezer e com o restante comecei os preparativos para fazer a geleia tentando me organizar mentalmente para não fazer a bagunça tradicional quando se trata desse tipo de compota. Nem preciso dizer que o esforço foi em vão e meu caminho até o nirvana da compota sem caos na cozinha ainda será longo, mesmo tendo o conforto de saber que estou apenas no início dele e na quarta tentativa de toda uma vida.
Até determinado ponto tudo correu muito bem; lavei as frutinhas e as escorri, espremi com as mãos [sem pedaço de nada voando pela cozinha, o que me deixou satisfeita], coloquei tudo na panela para aquecer e fazer a jabuticaba soltar líquido e apurar seu sabor, tudo isso com apenas uma panela um escorredor e uma colher de pau sujos. A perfeição. Minha concentração estava mantida nas etapas e o foco em uma única tarefa, ao contrário do que normalmente ocorre, funcionando a contento.
Só que - como em toda receita que exija um pouco mais de técnica - em algum momento vai acontecer da pessoa voltar ao seu estado natural e dotada de todo seu avoamento característico produzirá o verdadeiro caos com a falta de jeito de quem nunca entrou em uma cozinha antes. E no meu caso, dessa vez, foi a hora de passar as jabuticabas levemente cozidas pela peneira para separar o caldo das cascas e caroços. Comecei tentando usar o escorredor com uma bacia em baixo: muito grande e com furos pequenos demais. Fui de peneira de plástico [porque a de metal enferruja]: muito pequena e mole demais, não conseguia apertar com a colher para extrair toooodo sumo da fruta. Aí, no auge da falta de noção pensei: "vou espremer com a mão": quente demais. Alguns palavrões mentais e uma determinação
Pesei o caldo e o açúcar, passa pra lá e pra cá aqueles resíduos todos e comecei a fase três com momentos de grande tensão. Explico. Um dos meus pesadelos culinários é o tal do ponto da geleia, porque fico excessivamente preocupada em passar do ponto - tendo em vista o meu primeiro grande trauma -, tendendo, portanto a não atingi-lo, produzindo um doce com consistência mais líquida do esperamos quando se trata de geleia para passar no pão [e não para molhar o pão]. Vasculhei incansavelmente a internet atrás de algum site|blog|texto que explicasse, e sobretudo mostrasse, o ponto correto de retirar a geleia do fogo, mas para a uma cabeça [a minha] "nunca fiz geleia antes" tudo era muito vago e pouco ilustrativo. Como eu vou saber como é uma calda grossa o suficiente se eu nunca vi uma antes? Convenci-me de que teria que ser no prosaico método de tentativa e erro até que na leva em que comprei os primeiros livros de culinária para chamar de meus [já encomendei a segunda remessa na fatídica sexta-feira de ode ao consumo chamada ironicamente de Black Friday] tinha o Conservas e Compotas específico sobre geleias, compotas e afins.
No livro, além de várias receitas, estão algumas técnicas, utensílios necessários e pasmem... uma fotografia com o ponto correto da geleia. Não é preciso dizer o tamanho da felicidade súbita que me acometeu ao ver aquela foto. O investimento no livro já havia valido à pena só pela por me fazer visualizar algo que do qual eu só tinha uma ideia abstrata e porque finalmente eu consegui entender o que toda aquela história de pingo que não pinga significava. Eu não tirei uma foto da minha geleia de jabuticaba ao atingir o ponto correto [pode me bater agora] e também não vou usar a do livro, mas prometo que na próxima tentativa eu vou me esforçar para lembrar de fazer isso, mesmo se o caos estiver instaurado no momento.
No meio de tudo isso, enquanto eu estava lá mexendo a calda no fogo esperando pelo ponto certo com tudo bagunçado ao meu redor, me dei conta do quanto eu gosto de de fazer geleia. Assim como outras coisas na cozinha, como pães, fazer geleia me deixa feliz gratuitamente, mesmo sem eu nunca ter tido oportunidades de fazer esse tipo de doce antes ou mesmo sem nunca ter pensado que era uma coisa da qual eu podia gostar. E, num momento claramente filosófico, fiquei emocionada e realizei que o estilo de vida que tenho hoje é algo que me satisfaz plenamente, apesar de nunca ter esperado por isso, ou saber que ia ser assim tão diferente da vida que eu tinha antes de me mudar. Cheguei a verbalizar esse momento de satisfação com uma coisa tão simples como ter frutas frescas e produzir minha própria comida e comentei: "Sabe, eu gosto de fazer geleia! É uma coisa que me faz bem. Não só pelo fato de cozinhar, mas de poder ter acesso as frutas e todo o resto. Pelo novo estilo de vida".
A geleia ficou pronta com uma consistência satisfatória, embora não tenha ficado tão espessa [ai, meu trauma subconsciente]. Para minha próxima surpresa, ela é de um tom vermelho para roxo e eu sempre achei, não sei porque cargas d'água e sem nenhuma fundamentação lógica ou científica, que a geleia de jabuticaba era mais pro roxo enegrecido. Mas, como em algum momento levemente amalucado, por causa daquelas embalagens com as frutinhas pintadas que confundem a minha imaginação, eu pensei que geleia de cassis fosse de jabuticaba, não é nem tão estranho assim.
A outra surpresa ficou por conta do comentário que saiu da boca do meu querido companheiro após provar a geleia: "Ficou boa, mas tá muito doce, não? O doce tirou um pouco o gosto da jabuticaba". Apesar da crítica, essa frase é motivo de orgulho, já que a referida pessoa não sabia a diferença de gosto de um queijo para o outro há menos de três anos. Para alguém que cozinha para outra pessoa assim a evolução, digamos, gustativa, expressa na forma de um comentário tão elaborado - pelo menos no que diz respeito a percepção dos sabores - é algo a ser comemorado. De fato, a geleia ficou doce, mas acho que foi por causa da doçura inerente a fruta, já que a quantidade de açúcar foi a de sempre.
Nada que atrapalhasse a performance da geleia.
Update de mesmo dia: mantendo a linha e evitar o desperdício, não quis jogar o resíduo de cascas e caroços no lixo [nem sabia, mas as propriedades nutricionais da jabuticaba estão mesmo é na casca]. Então bati tudo no liquidificador com água e coei o líquido, o que resultou num creme espesso, muito parecido com acaí, mas ácido demais no sabor. Ainda assim dispus o creme em potes na geladeira para ver o que fazer com aquilo. Agora há pouco fiz a descoberta revolucionária: misturei duas colheres desse creme de jabuticaba com iogurte e granola e fui feliz com a experiência do lanchinho cor de vinho. Vou congelar uma parte para ver se cabe num bolo.
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