"Você está pronta para um desafio?"
"Han!?"
"Não quer fazer aquele bolo que nunca dá certo? Tenta aquela outra receita que eu trouxe."
Explicação.
A pergunta retórica é para conferir uma falsa ideia de eu tenho alguma opção. Dito isso, o tal bolo é nada mais, nada menos que um clássico chamado "broa de fubá" proveniente nada mais, nada menos da casa e forno da mãe dele. Isso mesmo, o bolo que nunca dá certo é um feito originalmente pelas mãos da mãe do meu querido companheiro e que nunca deu certo saindo do forno de minha casa. Eu perdi várias vezes para o dito cujo até que deixei pra lá e internalizei que uma coisa tão prosaica como bolo de mãe deveria ficar aos cuidados apenas da própria, para ter algum sentido maior na existência do ser humano. Chegava a ser uma recompensa ir a casa da mãe para comer a "broa de fubá" específica, que só podia ser produzida dentro dos limites daquela cozinha agora tão distante da cidade que escolhemos para morar.
O bolo também é um sinônimo de inquérito familiar constante, o que não deixa de ser engraçado, pois é do conhecimento de todos naquela casa - pai, irmãos e anexos - que esse bolo só é feito o filho que mora longe vai visitar. Isso não deixa de ser verdade, mas essa história vale muito mais pela pilha da brincadeira e pelas paixões que causam na mãe em questão do que pela realidade dos fatos.
Mas, voltando para o lado de cá, é muito inconveniente, pra não falar absurdo, alguém te pedir para fazer um bolo que nunca dá certo: 1. verbalizando essa sentença; 2. implicitamente colocando a sua capacidade culinária tão prezada por você em dúvida; 3. botando pressão na forma de um desafio; 4. Numa tarde chuvosa que pede um bolinho; e 5. sendo o autor do pedido a pessoa que é.
Ainda um pouco desconfiada com tantos fatores emocionais e memorialísticos envolvidos na contenda fui procurar receitas de bolo na internet. Achei algumas interessantes e menos traumáticas e tentei ver se conseguiria substituir o pedido com uma alternativa viável. Donde saiu esta conversa.
"Você comeria um bolo de pera se eu fizesse?"
"Pera!!!? Por que você faria isso comigo?"
"É pra tirar seu trauma de pera. Eu faço com carinho e sem nariz!" - existe uma lenda da pera com nariz que eu já vou explicar.
"Eu tenho trauma de fubá! O que você pode fazer para me ajudar?"
"Um bolo de fubá com pera? [coloque aqui os risos da vitória retórica e a satisfação de poder contar com respostas rápidas]
Breve silêncio.
"Vai estragar o bolo. E fubá e pera não combinam."
Algum tempo depois eu me dirijo ao quarto/escritório para anunciar a vitória do oponente. Eu estava pronta para eliminar um trauma. O meu da broa de fubá.
Pausa para a explicação do nariz.
"Por que você não gosta de pera?"
"Porque não."
"Não é possível! Pera é tão gostoso!"
"É que uma vez eu mordi uma pera e tinha um nariz dentro."
"Como assim?"
"É tinha um pelinho que parecia um nariz! Horrível."
Pronto, tá explicado. E eu não inventei ou sonhei com essa história.
A vontade do menino de comer o bolo era tão grande que, como a receita anotada aqui em casa nunca funcionava [nem com as diversas adaptações que eu tentei fazer para corrigir o problema], certa vez ele foi na casa da mãe, fotografou sorrateiramente o caderno de receitas e me deu a foto para não ter erro. A primeira receita desse bolo foi anotada por telefone e já aconteceu de um tudo com ele, menos ele ficar comível. Já solou, ficou duro, deformado, meio assado - meio cru, uma nêmesis [de novo a palavra nova] de verdade. Com a fotografia em mãos fui preparar os apetrechos para fazer o bolo.
Olha a prova do crime. |
O negócio dessa receita é bater tudo muito bem porque é quantidade dos ingredientes é cavalar. Em uma casa normal é bolo pra mais de uma semana, mas esse não é o meu caso. Para fazê-lo é necessário uma forma retangular grande [número 3] untada e enfarinhada, é claro. Então, foi pra batedeira 200 gramas de margarina ou manteiga [usei margarina porque queria acabar com ela e usei 50 gramas a menos do que pedia a receita porque era o que tinha no pote], 2 xícaras de açúcar [aqui também reduzi em uma xícara a quantidade pedida pela receita, já que meu paladar é meio enjoado pra coisas muito doces]. Nessa parte algumas muitas gramas de açúcar foram parar na bancada da pia devido ao meu método atrapalhado de separar ingredientes. Respira fundo e volta. Bati [eu não, a batedeira] até ficar um creme branco e coloquei os três ovos ainda batendo até aumentar o volume do creme. Depois fui medindo e jogando os secos na batedeira, sem desligar, apenas diminuindo a velocidade. Três xícaras de farinha e duas xícaras de fubá. Nessa hora eu me assustei. Achei que a batedeira ia explodir de tanta coisa dentro, pois ela começou a fazer um barulho esquisito de que não estava aguentando e o cheiro de queimado também já se pronunciava. Rapidamente medi uma xícara de leite e fui jogando na bicha pra ver se a coisa ia, mas a massa ainda estava resistente. Na fotografia com a receita pedia um vidro de leite de coco, o qual eu não tinha, e por isso acrescentei por minha conta uma xícara a mais de leite. Por fim coloquei uma colher de sopa e um restinho de fermento pra bater, algumas sementes de erva-doce e algumas de chia.
Fui girando a tigela da batedeira, o que fez com que as pás atingissem a farinha que ficou no fundo e produzisse uma linda nuvem branca por toda a cozinha. E eu ainda achando que a batedeira ia explodir e amaldiçoando o desgraçado que pensou em um projeto de batedeira que espirra tudo o que você pões nela. Só nesse bolo fui atingida por farinha e respingos de leite.
Com a massa sendo despejada na assadeira, o telefone toca. Cliente querendo modificações e acréscimos no serviço solicitado. Atendo e falou com o olho no tabuleiro cheio de massa sobre a pia enquanto o outro está lambendo a tigela de massa crua. Conversa resolvida, assadeira gigante no forno e espera. Contrariando tudo que eu aprendi em termos de adestramento de fornos temperamentais [com o meu primeiro e mais revoltado forno], eu coloquei uma temperatura mais alta do que venho utilizando ultimamente. Não sei porque eu faço essas coisa, mas faço. Simplesmente porque achei que ia dar. em menos de 20 minutos, eu acho, o bolo tava cheirando e atraindo pessoas loucas por bolo para o andar de baixo da casa. Fomos conferir o bolo e concluí, com o teste do palito [na verdade usei uma faquinha mesmo], que já estava bom, embora eu ainda achasse que ele estava mais baixo do que deveria. Bolo retirado e estaria perfeito se não tivesse ficado a beira de queimar de um dos lados [culpa do forno mais alto].
Nem por isso o comentário deixou de ser.
"Viu, acertou! A cara tá igualzinha!"
Com o bolo cortado e café pronto, comentário mais ou menos animadores.
"Tá do jeito que eu gosto: fofo e grande!"
"Quando é que eu vou ter que fazer outro, então?"
"Amanhã a tarde?"
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